
Um jesuíta na Mata Atlântica
Em 1560, o padre José de Anchieta enviou uma carta recheada de cobras para os seus superiores da Companhia de Jesus. A "Carta de São Vicente" conta os (muitos) encontros com serpentes que ele teve no litoral. Mortíferas!
Anchieta e as serpentes "venenosas" da Mata Atlântica
O livro Historia Naturalis Brasiliae, publicado em 1648 - ou seja, quase 150 anos após a chegada dos europeus - e outras obras relacionadas com a ocupação holandesa no Nordeste podem ser consideradas as primeiras fontes de conhecimento sobre a biodiversidade brasileira sob a ótica de naturalistas. Antes disso, tudo que se sabia sobre a natureza brasileira na Europa havia sido divulgado com base nas observações de navegadores, comerciantes, mercenários, missionários e outros profissionais cujo os motivos da vinda ao Brasil em nada tinha a ver com nenhum interesse em história natural.

Muitas dessas informações eram coletadas na forma de "ouvir-dizer" e deram origem a lendas que perduraram durante algum tempo, como o fato que os beija-flores se originavam de moscas e que os bichos-preguiças se alimentavam de ar. Apesar de controversas, esses primeiros relatos históricos revelam ao mesmo tempo resquícios da Idade Média, que segundo historiadores perdurou até 1520, e também o assombro e desconhecimento dos europeus frente à riquíssima biodiversidade brasileira. Entre os personagens desse período que mais se destacaram, deixando um relato relativamente extenso sobre a nossa fauna e flora está o padre jesuíta José de Anchieta. Entre as diversas cartas que enviou do Brasil para seus superiores da Companhia de Jesus, uma em especial, datada do fim de maio de 1560 e escrita em São Vicente - e por isso chama de "Carta de São Vicente" - é recheada de observações de Anchieta sobre a natureza brasileira, incluindo sobre as "cobras venenosas". Abaixo reproduzimos o trecho da carta em que o jesuíta escreve sobre esses animais.

Carta de São Vicente
"Algumas, chamadas jararacas, abundam nos campos, nas matas e até mesmo nas casas, onde muitas vezes as encontramos: a sua mordedura mata no espaço de vinte e quatro horas, posto que se lhe possa aplicar remédio e evitar algumas vezes a morte. Isto acontece com certeza entre os Indios: se forem mordidos uma só vez e escapam à morte, mordidos daí por deante, não só não correm risco de vida, como sentem até menos dôr, o que tivemos mais de uma vez ocasião de observar.

A outra variedade denominam bóicininga, que quer dizer, “cobra que tine”, porque tem na cauda uma especie de chocalho, com o qual sôa quando assalta alguem. Vivem nos campos, em buracos que subterraneos; quando estão ocupadas na procreação atacam a gente; andam pela grama em saltos de tal modo apressados, que os Indios dizem que elas voam; uma só vez que mordam, não ha mais remédio: paralizam-se a vista, o ouvido, o andar e todas as ações do corpo, ficando sòmente a dôr e o sentimento do veneno espalhados pelo corpo todo, até que no fim de vinte e quatro horas se expira.
Entretanto, quasi todos os Indios torram ao fogo e comem dessas cobras e de outras, depois de lhes tirarem a cabeça; assim como tambem não poupam aos sapos, lagartos, ratos e outros animais dêsse genero .
Ha tambem outras admiravelmente pintadas de várias côres, de preto, de branco. de encarnado semelhante ao coral, as quais os Indios apelidam ibîbobóca, isto é, “terra cavada”, porque elas no rojarem fendem a terra à maneira de toupeiras; estas são as mais venenosas de todas, porém mais raras.

Ha tambem outras, que são denominadas pelos lndios bóiguatiára, isto é, “cobras pintadas”, por causa das suas diversas variedades de pintura; estas são igualmente mortíferas.
Ha tambem outras quasi semelhantes, chamadas jararáca e tambem bóipeba, isto é, “cobras chatas”, porque quando feridas, contraemse e ficam mais largas; a mordedura dessas é também mortal.
Ha ainda outras, que se chamam bóiroiçanga, isto é, “cobras frias”, porque a sua mordedura comunica ao corpo um grande frio; estas, conquanto maiores do que as outras, são menos venenosas (por isso que não causam a morte); têm toda a bôca armada de dentes agudos, o que não se dá com as outras, pois as outras têm apenas quatro dentes curvos, tão subtis e ocultos que, se não se observa com cuidado, poder-se-há supor que os não têm; neles é que está a peçonha.
Todas estas, porém, exceto as que são venenosas, das quais ha, não só grande cópia, mas tambem diversidade, são tão frequentes, não se póde viajar sem grande perigo: vimos cães, porcos e outros animais sobreviverem quando muito seis ou sete horas á mordedura delas. Não raro temos caído em semelhantes perigo, tendo-as encontrado muitas vezes correndo pelos caminhos de um lado para outro em alguns povoados, a que nos tem chamado o nosso dever. Uma vez, voltando eu para Piratininga de certa povoação de Portugueses, para onde a obediencia me fizera ir com outro irmão a ensinar a doutrina, encontrei uma cobra enroscada no caminho; fazendo primeiramente o sinal da cruz, bati-lhe com o bastão e matei-a. Pouco depois começaram três ou quatro pequenos filhos a andar pelo chão; e admirando-nos de onde aquelas que antes não apareciam tinham saido tão de repente, eis que começaram a sair outros do ventre materno: e sacudindo eu o cadaver apareceram outros filhos ainda, em numero de onze, todos animados e já perfeitos, exceto dois. Ouvi tambem contar, por pessoas dignas de crédito, de uma outra em cujo ventre foram encontradas mais de quarenta. Todavia, no meio de uma multidão tão grande e frequente delas, o Senhor nos conserva incolumes, e confiamos mais nele do que em contra-veneno ou poder algum humano; só descansamos em Jesus, Senhor nosso, que é o unico que póde fazer com que nenhum mal soframos, andando assim por cima de serpentes."

Um príncipe na Mata Atlântica
Por que o nome científico da jararaca-pintada é Bothrops neuwiedi? É uma homenagem ao naturalista Maximilian zu Wied-Neuwied, também conhecido como “o príncipe coletor”. No início do século XIX, ele atravessou a Mata Atlântica documentando espécies de plantas, peixes, serpentes e macacos.
Em 1807, fugindo das tropas de Napoleão, a corte portuguesa veio ao Brasil com suas 16 embarcações, abrindo os portos da colônia para a chegada de estrangeiros e iniciando uma nova fase no estudo da nossa biodiversidade. Enfim, o Brasil se tornou um dos destinos possíveis na lista de muitos naturalistas viajantes que planejavam expedições para lugares com natureza ainda desconhecida.
Dentre diversos naturalistas viajantes, um que deixou seu nome marcado na história através do seu trabalho científico foi o príncipe da Prússia Maximilian zu Wied-Neuwied. Grande interessado em história natural, principalmente em zoologia e etnologia, teve sua vinda influenciada pelo seu conterrâneo, o grande explorador e naturalista Alexander von Humboldt.
Entre julho de 1815 e maio de 1817, Wied percorreu a Mata Atlântica entre o Rio de Janeiro e Salvador. Retornou para Europa com uma vasta coleção de espécimes, publicando uma série de trabalhos e descrevendo dezenas de espécies novas. Muitas serpentes emblemáticas foram batizadas por Wied com base nos espécimes que coletou no Brasil. Entre elas estão as atuais jararaca (Bothrops jararaca), jararaca-verde (Bothrops bilineatus), e a subespécie de surucucu da Mata Atlântica, Lachesis muta rhombeata.
As ilustrações que acompanham esse texto fazem parte da obra Abbildungen zur Naturgeschichte Brasiliens, de autoria de Wied em parceria com Johann Wagler. Ela reúne as principais descobertas relacionadas às serpentes feitas nas expedições do naturalista.




Uma longa expedição
Em 1817, o zoólogo Johann Baptist von Spix e o botânico Carl von Martius lançaram-se em uma das maiores expedições de exploração do Brasil, viajando no litoral oriental desde o Rio de Janeiro até Belém!
O zoólogo Johann Baptist von Spix e o seu parceiro de expedição, o botânico Carl von Martius, chegaram ao Brasil no mesmo ano em que Wied voltou à Europa. Eles chegaram junto de uma comitiva de pesquisadores e artistas que acompanhava a vinda da Princesa Leopoldina.
Spix e Martius fizeram uma das maiores expedições naturalistas que já ocorreram no Brasil. Durante três anos, percorreram cerca de 14 mil km, desde o desembarque no Rio de Janeiro até o retorno à Europa em Belém. No caminho passaram por São Paulo, Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão e Amazonas. Na Europa, se dedicaram com afinco a estudar os espécimes coletados. Spix dedicou um livro exclusivamente as serpentes brasileiras, onde descreveu muitas espécies novas, incluindo a jararaca-pintada (Bothrops neuwiedi), a jararaca-malha-de-sapo (Bothrops leucurus) e a jararaca-tigrina (Bothrops taeniatus).
As ilustrações que acompanham esse texto fazem parte da obra Serpentum Brasiliensium species novae, de autoria de Spix em parceria com Johann Wagler. Ela reúne as principais descobertas relacionadas às serpentes feitas nas expedições do naturalista.




Simbolismo Marajoara
A Cultura Marajoara é fonte de interesse e mistério para quem se debruça sobre a arqueologia brasileira. As cerâmicas são os principais resquícios dessa civilização, que nos faz questionar as delimitações entre animais humanos e não-humanos.
As cerâmicas encontradas na Ilha de Marajó (PA) são datadas entre os anos de 500 a 1500 d.C. Coloridas com vermelho, branco e preto, revelam criaturas humanas com membros de outros animais típicos da Floresta Amazônica.
As tangas são um dos objetos mais estudados da Cultura Marajoara. Usadas provavelmente durante rituais funerários, elas apresentam grafismos de serpentes, símbolos da fronteira permeável entre a vida e a morte.
Naturalismo Tapajônico
As cerâmicas Tapajônicas são o que resta da memória dos Tapajós. Conta a lenda - e os registros históricos - que as primeiras peças foram encontradas apenas no século XX, quando uma chuva torrencial expôs as peças no solo para crianças que brincavam em Santarém (PA).
Vasos de gargalo, cariátides, muiraquitãs… a arte tapajônica possui formas distintas das demais encontradas na Amazônia, exemplo da riqueza cultural que já existiu e que permanece - resistindo - na região.
Jararacas no caminho
Qual a chance de uma pessoa cruzar o caminho com uma jararaca? O Vale do Ribeira é a região com o maior número de acidentes com cobras no estado de São Paulo. No vídeo abaixo, a gente descobre como estudar o movimento das jararacas e quais papéis as pessoas assumem na pesquisa.
Quem vive no Vale do Ribeira?
A comunidade do Guapiruvu é formada por pequenos produtores rurais que, desde a década de 1950, trabalham sobre os princípios da sustentabilidade e solidariedade enquanto reivindicam direitos sobre a terra e atenção do governo para direitos públicos essenciais.
O bairro fica próximo ao Parque Estadual Intervales (PEI), uma área de proteção ambiental, e foi escolhido como foco de ações educativas e de pesquisa pelo interesse da comunidade em parcerias com pesquisadores e pesquisadoras (além da importância dos acidentes ofídicos e da probabilidade de encontros com Corallus cropanii).
O grupo Amigos da Mata é parte da AGUA (Associação dos Amigos e Moradores do Guapiruvu), fundada em 1997 para fortalecer a comunidade, e é formado principalmente por crianças e jovens interessados na proteção do meio ambiente.
Interagindo com serpentes
Desenvolver sentimentos e memórias positivas com a natureza é um dos meios mais eficazes para a conservação. Semanalmente no Instituto Butantan, educadores do Museu Biológico realizam uma atividade ao vivo com o público onde as pessoas podem conhecer e tocar nas cobras. O Afonso é uma das serpentes que participam desse evento!
Diadoe: Origem do Matapi, Pirarucus e Traíras
Na cosmologia indígena, a figura da cobra pode representar a criação, inícios e invenção. Aqui apresentamos uma história da etnia Desana do surgimento de pirarucus e traíras, peixes originados a partir das escamas da Cobra-Grande, chamada de Diadoe. As ilustrações são do artista Feliciano Lana, gentilmente cedidas para a exposição pelo Museu da Amazônia (MUSA).
O homem dessa história era Muhipu, também conhecido como Gente-Estrela. Outros dizem que ele foi um poderoso deus. Ele morava no rio Uaupés, acima da comunidade Jutica. Todos os dias pegava muitos peixes. Os outros da aldeia iam pescar, mas nada conseguiam.

Para pescar, Gente-Estrela levava seu filho, que tinha feridas no corpo, e o colocava num galho sobre o rio. A água que pingava das feridas atraía os peixes, que se acumulavam, lambendo a banha do corpo dele. Mas o pai não matava muitos peixes, pegava só o que precisava.

Um dia, o pai foi para a roça. Ficou só o menino. “Como é que teu pai faz para trazer peixes todo dia?”, perguntou o pessoal da aldeia ao menino. Depois de descobrir, um dia, aproveitando a saída de Gente-Estrela, eles levaram o filho doente para pescar.

Pendurado num galho, o menino ficou para atrair os peixes. Onde tem peixe, tem cobra! Sentado no galho da árvore, o menino reclamou que o pessoal estava matando muito peixe. “Vocês estão matando peixe demais!”, o menino já estava avisando a Cobra-Grande chegando.

Com toda a velocidade, a Cobra-Grande veio e comeu o filho de Gente-Estrela. Não deu tempo de salvar o menino. Ele sumiu!

Mais tarde, Gente-Estrela voltou da roça. O pessoal da aldeia contou pra ele toda a verdade. O pai ficou sabendo que a cobra levara seu filho. O pai do menino perguntou para onde a cobra tinha ido. Daí ele se armou de terçado, machado, uma panela de tuiuca e seguiu à procura da Cobra-Grande.

Em certo lugar, Gente-Estrela tinha alcançado a cobra. Ele corria na frente, ia cercando pelo rio Uaupés, mas a cobra chegou e escapuliu. Ele foi correndo de novo atrás dela. Cansado de carregar tantas coisas, jogou fora a panela de tuiuca e essa panela virou uma montanha de rocha, localizada no rio Uaupés.

A cobra prosseguiu, descendo o rio Uaupés, até sair no rio Negro. Mas Gente-Estrela não desistiu, veio correndo na frente dela, até que chegou à Fortaleza de São Gabriel. Aí fez rapidinho o cercado, colocou matapi grande e ficou esperando com a arma dele. A cobra viu que não tinha mais como escapulir. O único jeito foi entrar no matapi.

Quando a cobra morreu, foi arrastada por Gente-Estrela pela terra para tirar suas escamas. Primeiro, Gente-Estrela tirou as escamas do meio da cobra e jogou para baixo do rio, para virar pirarucu.

Depois tirou as escamas do rabo da cobra, miúdas, e jogou-as para cima, na direção das cabeceiras do rio Negro. Daí viraram traíras. Gente-Estrela disse: “Você comeu meu filho! Assim, também, a sua geração será comida por todas as humanidades, até o fim!”.

SERPENTEANDO
O texto apresentado aqui é original do MUSA (Museu da Amazônia). No site do MUSA, é apresentada uma narração do mesmo conto pelo povo Tukano.
Além disso, no Youtube do MUSA, tem um vídeo sobre a construção de matapi, a armadilha usada por Gente-Estrela para capturar Cobra-Grande.
Cobra Honorato
Um homem-cobra, protetor dos humanos e com o desejo de ser como nós. Cobra Norato é um dos mitos mais espalhados e diversificados da Amazônia. Popularizado em 1931 pelo poema épico de Raul Bopp, aqui você vai conhecer mais uma das diversas versões dessa narrativa, com ilustrações do artista Feliciano Lana, gentilmente cedidas para a exposição pelo Museu da Amazônia (MUSA).
Há muito tempo, quando Manaus ainda era uma cidade pequena, havia um comerciante com uma família muito grande, muitos filhos e netos. Um dia chegou um homem que ninguém conhecia e começou a namorar a neta desse comerciante.
Os dois namoraram longo tempo e a mulher um dia ficou grávida. Durante a gravidez, o homem sumiu e não voltou mais. Ouviram dizer que ele era de Buía Wasu, uma cidade encantada de gente-peixe, e que era o chefe daquela cidade.

Até que um dia a mulher deu à luz um menino com cabeça de gente e corpo de cobra. No primeiro instante a mãe ficou assustada, mas criou o menino-cobra pois sabia que o pai dele era bonito, elegante e forte.

A criança crescia muito rápido e a mãe não aguentava carregar por causa do peso e do comprimento. Então ela colocou o menino dentro de uma caixa.
Como o menino era outro tipo de gente, crescia muito rápido. Não cabendo mais na caixa, foi colocado em um quarto grande, mas também encheu o quarto.

Cobra Honorato sempre dizia à mãe: “Eu quero conhecer meu pai, quero ir lá ficar com ele. Não adianta eu estar no meio das pessoas que não são cobra. Eu tenho vergonha.”
Numa noite, Honorato desceu para o porto acompanhado pela mãe. Mergulhou no rio e foi-se embora com o pai.
Quando chegou no Buía Wasu, o pai dele fez uma reza e fez aparecer pernas e roupas igual aos outros meninos. Mas ele guardou as vestimentas de cobra. Então Honorato viu no porto vários destroços de barcos.
Honorato perguntou a um rapaz e soube que aqueles barcos pertenciam a pessoas de Manaus, que agora estão mortas. Com muita raiva das pessoas de Buía Wasu, Honorato matou todos, até mesmo o seu pai.

Sempre com seu chapéu branco, Honorato costumava visitar a mãe em Manaus.
Nos tempos anteriores, antes de Honorato nascer, quando uma pessoa que não conhecia o lugar entrava no Buía Wasu, não tinha como escapar. Sempre era devorada pelos animais aquáticos.
Quando um barco, pequeno ou grande, entrava no Buía Wasu, a cobra agarrava no fundo do barco e ele afundava. E quando uma mulher estava no tempo de menstruação, gente-peixe ficava bravo, criava um tremendo banzeiro, a canoa alagava e o bicho comia a mulher.

A forma de andar das cobras de todos os tempos até agora é se arrastando sobre tocos de pau, sobre pedras, sobre espinhos, sobre terras, sobre areias.
Honorato explica como sofre andando com a vestimenta de cobra: “A gente sente muita dor no peito, sente dores na barriga, porque a gente anda se arrastando.” Honorato diz à mãe que não quer mais aquela vida, quer ficar em Manaus perto da família.
A mãe concordou, mas disse que ele primeiro tinha que falar com as autoridades e pedir permissão. “Quem são eles?”, perguntou Honorato. “A autoridade máxima é o exército”, diz a mãe.

Honorato vai para o quartel como sua mãe havia mandado. Quando chega lá, vê muitos militares. Era um desfile no lado do prédio.
Honorato diz ao comandante: “Eu quero voltar a viver aqui. Estou cansado de estar com as cobras, senhor. Mas para isso eu tenho que morrer. Morrendo, meu espírito pode voltar vivo e ficar aqui.” E Honorato pede ao comandante um atirador para atirar entre seus olhos. Marcam o dia e a hora.

O rio encheu até quase cobrir a praia, o atirador dentro d’água se tremeu de medo vendo a cobra-gigante tão perto e disparou o fuzil de qualquer maneira.
O atirador acertou bem no olho esquerdo do Honorato. O espírito de Honorato saiu vivo, mas bravo porque estava cego.

SERPENTEANDO
Feliciano Lana foi liderança indígena Desana e um artista plástico mundialmente reconhecido por ilustrar a cosmo-mitologia do Alto Rio Negro. Alguns de seus trabalhos estão permanentemente expostos no MUSA (Museu da Amazônia).
As serpentes fazem parte da cosmo-mitologia de diversos povos na Amazônia. No vídeo abaixo, o professor Eduardo Góes Neves fala sobre a importância da figura da "Cobra Grande" e apresenta brevemente o mito de criação do povo Tukano. Você pode conhecer o mito em mais detalhes no canal "SELVAGEM ciclo de estudos sobre a vida", organizado pelo escritor e líder indígena Ailton Krenak.
Serpentes dos Waujá
Chocalhos e duas cabeças… Na mitologia Wauja, criaturas semelhantes a serpentes aparecem em diversas histórias, tanto alegres quanto sinistras.
Os Wauja são um dos dezesseis povos indígenas encontrados no Território Indígena do Xingu, localizado no Mato Grosso.
Na mito-cosmologia Wauja, as identidades de pessoas-animais-artefatos-monstros se apresentam em uma rede intrincada de transformação. Aqui, apresentamos duas histórias envolvendo serpentes contadas pelo ancião Kamo Wauja, pai do cinegrafista e tradutor Piratá Wauja.
ARAKUNI

Arakuni canta e conta histórias dos povos indígenas enquanto navega pelos rios. Suas cores e seus dois chocalhos são conhecidos de Kamo Wauja desde que ele se tornou pajé.
YANUMAKAPI

Yanumakapi devora navegantes famintos em canoas pelos rios. Kamo Wauja nos alerta do perigo dessa criatura com duas cabeças.
Serpenteando
Na tradição Wauja, era comum que as pessoas se reunissem ao final da tarde no centro da aldeia para que os pajés se comunicassem com os caciques e os jovens, transmitindo histórias sobre os valores e costumes do povo.
O modo como Kamo Wauja nos apresenta Arakuni e Yanumakapi demonstra a sua habilidade de narração, pelo ritmo lento e o foco em detalhes. Nesta exposição, com o objetivo de adaptar a linguagem ao meio digital, fizemos um recorte da narração e aceleramos o vídeo. Incentivamos que você acesse a narração original, disponível no Youtube!
Referências
Waurá, Piratá (2016) Literatura na educação básica do povo Waurá: entre oralidade e a escrita.
Povos Indígenas no Brasil: Waujá. Instituto Socioambiental. Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Waujá
Cerâmicas e Bichos
A Amazônia não seria o que é hoje sem a presença dos povos originários na região, que através da domesticação e do manejo de plantas transformaram a estrutura da floresta. Porém, apesar dessa relação tão íntima com a vegetação, são os animais - e não as plantas - que se destacam nas cerâmicas desses povos.
Cobras, anfíbios, escorpiões, pássaros, onças e outras representações zoomórficas são testemunhos de cosmologias que enfatizavam as relações e capacidades transformativas entre humanos e animais.
Algumas das peças com representações animais que você vai conhecer aqui foram gentilmente cedidas pelo Museu Paraense Emílio Goeldi (PA), que possui uma coleção incrível de cerâmicas de diferentes tempos, culturas e regiões da Amazônia. Essas peças nos permitem conhecer um pouco mais sobre as culturas que já existiram na região e que ainda hoje despertam a nossa curiosidade.
Artisté
As cerâmicas Artisté demonstram um conhecimento profundo dos povos que as produziam sobre o ambiente, a engenharia e a astronomia. Urnas funerárias e outros itens ritualísticos são encontrados em poços, que foram escavados e depois tampados com grandes placas de granito, marcando os pontos astronômicos.
Onde? Sítios arqueológicos no extremo nordeste da América do Sul, entre Amapá e Guiana Francesa.
Quando? Datados entre 1100 e 1600 EC (Era Comum)
Aqui apresentamos a igaçaba, uma vasilha cerâmica que apresenta um cilindro de argila próximo da borda, representando o movimento da serpente. Além da serpente, também podemos identificar um réptil semelhante a uma tartaruga.



Koriabo
As cerâmicas Koriabo são vestígios de uma extensa rede de interação e trocas de ideias, pessoas e objetos, que conectou povos do Caribe, Guianas e baixo Amazonas durante os séculos que precederam a invasão européia.
Quando? 800 e 1500 AEC (Antes da Era Comum).
O fragmento de vasilha a seguir traz um dos elementos típicos dessas cerâmicas: a representação de animais (sobretudo cobras, tartarugas e lagartos) em filetes de argila decorando os vasos. Ele foi encontrado em Gurupá, no baixo rio Xingu.

Marajó
A cerâmica marajoara ficou mundialmente reconhecida pela riqueza dos materiais, que combinam o uso de cores e relevos para formar figuras híbridas de animais e humanos extremamente complexas.
A cerâmica cerimonial é muito diversa, incluindo estatuetas, bancos, tangas, carimbos, urnas funerárias e vasilhas.
Onde? Ilha de Marajó.
Quando? 400 e 900 EC.
A peça a seguir é uma urna funerária com grafismos escalonados, que era utilizada para guardar restos mortais. Além dela, apresentamos um prato decorado com grafismos labirínticos simétricos formando rostos.




Santarém
Produzida pelo povo Tapajó, peças de cerâmica são encontradas por uma vasta área do baixo Amazonas, indicando a existência de uma ampla rede de trocas entre grupos da região. Detalhes modelados das cerâmicas demonstram a complexa relação entre seres humanos e não humanos, além de suas capacidades transformativas.
A cerâmica cerimonial é muito diversa, incluindo estatuetas, bancos, tangas, carimbos, urnas funerárias e vasilhas.
Onde? Rio Tapajós, Santarém.
Quando? 900 e 1600 EC.
A peça abaixo representa cobras e outros seres do mundo animal, através da utilização de filetes aplicados no corpo da vasilha. Além disso, a borda possui incisões em linhas e espirais típicas da cerâmica Santarém.




